“É livre a manifestação do pensamento e da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sendo vedado o anonimato. (CF 88).”

domingo, 14 de outubro de 2012

As crianças vítimas da Lei


Todos conhecem o amor, mesmo escapando da razão a possibilidade de sua perfeita explicação. Fernando Pessoa, em trecho cuja autoria lhe é atribuída, elucida: “amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?”.
Mas, para doutrina e jurisprudência, o mais nobre dos sentimentos não pode ser exigido, pois não é um direito. Trata-se de um corpo estranho ao universo jurídico, pelo simples argumento de supostamente não estar previsto no ordenamento. 

Amor dos pais: direito das crianças e adolescentes
Bruno Barbosa Heim

(...)

2 Direito ao Amor: da Negação ao Necessário Reconhecimento
Em 24 de abril de 2012, apreciando o Recurso Especial n. 1159242/SP, a terceira turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão inédita no âmbito deste tribunal, com grande repercussão no seio jurídico. Reconhecia-se que os filhos abandonados afetivamente pelos pais podem sofrer danos morais e que este ato, ilícito, enseja o dever de indenizar. O tribunal não pode ordenar o retorno do tempo para que o dano não ocorresse, mas, buscou pela valorização in pecunia, compensar a lesão. A decisão, também, tem função pedagógica, ao dissuadir outros pais a não se furtarem dos deveres inerentes à paternidade.
Porém, ao lavrar seu voto, o exmo. Ministro que relatou a decisão adentrou em debate que se estende há anos na doutrina e jurisprudência, e é objeto deste estudo: crianças e adolescentes têm o direito de serem amados por seus pais?

(...)

O amor, portanto, não foi compreendido como direito, mas se apresentou como bem a ser estranhamente tutelado. A criança não recebeu amparo no braço de seu genitor, nem tão pouco do STJ, mas, na perspectiva do Ministro, ao negar acolhida pelo Judiciário estar-se-ia protegendo este bem.
(...)
Data máxima vênia, ousamos discordar dos posicionamentos supramencionados. O Judiciário não pode se furtar de apreciar matérias situadas no campo do “intangível” ou do que não é passível de “mensuração”, para permanecer no confortável campo do que é “mais técnico” [1], sob pena de, no mínimo, violar o direito fundamental de inafastabilidade do Poder Judiciário.
Ainda que o amor não possa ser medido e quantificado, o dano causado à criança ou adolescente pela sua ausência é passível de mensuração e não seria estranho à rotina do Judiciário, que diuturnamente aprecia pedidos de reparação por danos morais à imagem, honra, nome e demais direitos da personalidade. 
Outrossim, a suposta ausência de normatização não pode ser argumento suficiente para negar o “amor” como direito subjetivo titularizado por crianças e adolescentes. A lei não é a única fonte do direito, isto já está claro desde a Lei de Introdução ao Código Civil[2], e inúmeros trabalhos têm abordado a pluralidade de direitos que coexistem na sociedade, ou da força das necessidades como produtora de novos direitos (WOLKMER, 2004). Não há dúvidas que o amor é uma necessidade de todos, principalmente para o infante.
Resta, em remate, afastar a impropriedade de que o amor não é um direito, por, supostamente, não estar previsto no ordenamento jurídico como “lei”, pois ele já se encontra devidamente positivado.
A lei n. 12.318/10, que dispõe sobre a alienação parental, conceitua-a como interferência na formação psicológica de crianças e adolescentes que causa prejuízo à manutenção de vínculos com o genitor[3]. “Vínculos”, no plural, pode envolver as relações de paternidade e relativas ao poder familiar, mas, nos parece que especialmente se refere aos vínculos amorosos e afetivos estabelecidos entre pais e filhos. No mesmo sentido, Maria Berenice Dias (201?, p. 02) descreve a consequência da alienação parental como a ruína do vínculo amoroso: “a criança, que ama o seu genitor, é levada a afastar-se dele, que também a ama. Isso gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre ambos”. Não restam dúvidas, portanto, que o amor no seio das relações familiares foi definitivamente reconhecido como bem jurídico a ser devida e legitimamente tutelado.
Mas, muito antes disso, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU) em 20 de novembro de 1959 já era clara a este respeito, ao declarar – e não instituir – entre os seus princípios, que toda criança tem direito de ser amada pela família e sociedade.
Também, a Convenção Sobre Direitos da Criança adotada pela Assembléia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989, aprovada pelo Decreto Legislativo n. 28, de 14 de setembro de 1990 e promulgada pelo decreto presidencial n. 99.710, de 21 de novembro de 1990, reconhece que a criança “deve crescer em um ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão”.
Como outros direitos expressos em tratados internacionais de direitos humanos são material e formalmente fundamentais, mormente interpretação conduzida pela doutrina especializada acerca da cláusula aberta de direitos fundamentais prevista no art. 5º, §2º da Constituição Federal (PIOVESAN, 2008). Em que pese não ser este o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, não restam mais dúvidas que os tratados internacionais de direitos humanos ingressam na ordem jurídica interna com posição hierárquica destacada, alojando-se acima das legislações ordinárias e complementares, quando não aprovados pelo procedimento previsto no art. 5º, §3º, hipótese que equivalerão às emendas constitucionais.


3 Conclusão
O amor, tema que esteve presente na sociedade deste o sistema mítico de explicação da realidade e se mantém insuperável na atualidade, tem sido fustigado pela doutrina jurídica e jurisprudência, que lhe afasta da condição de direito subjetivo. Crianças e adolescentes, carentes do amor paternal, encontram barreira no judiciário sempre que buscavam reparação em face do pai ou mãe, sobre fundamento de que, se não é um direito expressamente reconhecido pelo ordenamento jurídico, não haveria um correlato dever jurídico a se atribuir aos pais. Consequentemente, não se configura ato ilícito passível de reparação. Da análise da doutrina e dos votos de Ministros do STJ encontramos, ainda, posicionamentos acerca da intangibilidade do amor, que o tornaria imensurável e, portanto, impossível de ser apreciado pela técnica jurídica. 
Em sentido contrário, pudemos demonstrar que intangibilidade, bens imensuráveis e incertezas técnicas não são questões estranhas ao ordenamento jurídico brasileiro, assim como os “direitos” não são apenas aqueles previstos em lei, mas que existem diversos direitos sendo afirmados pela sociedade, em especial, aqueles oriundos da necessidade humana; também, apresentamos a previsão do amor como um bem jurídico e direito humano de crianças e adolescentes na legislação pátria e em tratados internacionais de direitos humanos, que integram a ordem jurídica brasileira.
Diante disto, sem negar os avanços oriundos do Recurso Especial n. 1159242/SP, que reconheceu a ilicitude da conduta de pai ausente que abandonou afetivamente filho, provocando-lhe dano moral, cremos ser hora da doutrina e jurisprudência alterarem posição acerca do direito subjetivo de crianças e adolescente serem amados por seus pais.
Esta conclusão pode ser alcançada pela técnica – com o estudo do sistema internacional de direitos humanos, da interpretação da legislação pátria e da compreensão do direito como um fenômeno que se cria e reproduz constantemente pela sociedade – ou, simplesmente, pelos caminhos do coração.


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“É preciso entender que as leis servem apenas para orientar a nossa convivência, como sociedade. Mas nosso comportamento como pessoas depende de nossos valores, do uso de nosso discernimento e da nossa liberdade. Não dependemos de governos, partidos e líderes para sermos honestos e verdadeiros. Os valores morais é que nos mostram o caminho do bem e da verdade, são eles que impedem o ser humano de praticar atos ilícitos. Quando não são importantes na vida das pessoas, não há sistema que impeça um lamaçal de corrupção e de maldades.

Caráter, consciência, amor à verdade e ao próximo, generosidade, fidelidade, responsabilidade, respeito ao alheio, senso de justiça, são essas as virtudes que comandam a vida pública. Abandoná-las é decisão pessoal. Toda culpa é pessoal. Ela é decorrente do mau uso da liberdade. A culpa é tão intransferível quanto as virtudes. Nossa luta é convencer nosso povo a se comportar de acordo com essa visão ética. Por isso devemos sempre querer que os culpados sejam punidos.” (Sandra Cavalcanti, professora e jornalista, foi deputada federal constituinte.- O Estado de S.Paulo)

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,os-culpados--devem-ser-punidos-,798388,0.htm